Crónica de Alexandre Honrado | Fazer abril (em março)

Abril entre cravos: Alexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado

Fazer abril (em março)

 

“A porta da justiça é o estudo”

Walter Benjamin.

 

Há quem não goste de estudar e há quem não veja qualquer impedimento em estudar todo o tipo de matérias. Aprender confere ao indivíduo o bem-estar de libertação. Se o mundo interior for livre, muito mais facilmente se aspira à liberdade do mundo exterior, que se conquista pela determinação, persistência e sapiência. Todavia, o que se aprende deve ser escolhido de modo a não constituir um sedimento nefasto, que é o contrário do que saudavelmente possa trazer ao aprendiz. Sublinham-se aqui duas ideias de aprendizagem — as quais podem fazer estremecer os mais conservadores, aqueles que desdenham do processo evolutivo, os que acreditam que a terra é plana ou a Lapónia tem um alojamento local para renas, gerido pelo bonacheirão do Pai Natal.

São ideias nascidas da capacidade antropológica da interpretação do humano e da sua evolução. É que, exatamente, o ser humano não evoluiu graças à capacidade do seu cérebro, mas porque deu aos pés, no outro extremo do corpo, atributos de equilíbrio, locomoção, mobilidade, utilidade e funções até antes desprezados e que sim, depois de interpretadas, evoluindo emancipadas, guindaram-se ao progresso: levaram ao cérebro fluxos sanguíneos que tornaram este órgão uma coisa incomparável, o nosso melhor sempre operacional de sensações, emoções e realizações.

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Ergueu-se o ser humano; pôs-se de pé; caminhou; foi quase sempre mais longe de si mesmo. E ligou o cérebro a outros cérebros, interpretou a alteridade. E foi protagonista da criação. De uma criação que está assente, na verdade, direta e vertical. Desenvolveu-se e disponibilizou-se, migrou, foi ainda mais longe de antes supunha ser possível. Acreditou que podia ser cosmopolita ou, pelo menos por vezes, confundiu-se com a capacidade de ser senhor do mundo.

Pé ante pé de pé tornou-se universal. Pelo menos libertou se do local, da visão, escassa e apertada, de que a sua aldeia era o mundo inteiro.  Tornou-se o mundo de uma única aldeia, cheia de contrastes e diferenças. Descobriu, por vezes com a amargura do seu ego vaidoso e frágil, que não era único, nem o melhor de todos. E que aquilo em que acreditava não era necessariamente a melhor forma de crer.

Foi humano, em vez de sombra e até pensou nessa história fascinante da caverna de Platão, onde as projeções, as idealizações, o imaginário são parte, fazem parte da realidade, da construção do humano. Que é, diga-se com veemência, uma construção atraente.

A segunda constatação é também arriscada, mas plausível. O incrível ser humano ganhou estatuto e presença ao transformar a forma como utilizava o corpo. Em especial duas partes do corpo – já não falo dos pés que cumpriram a sua missão.

Agora, eram as mãos que passavam a ser a sua ferramenta mais produtiva e hábil e a boca, que não se limitava a mastigar ou a urrar para aprender a articular sons que em breve seriam palavras e fixações de ideias, algumas inúteis, mas outras, muitas delas meritórias e proveitosas.

Estamos à beira de eleições e isto parece-me relacionado. Nestas eleições, em março, provocadas por um presidente sinuoso e de estratégia bem definida, é-nos colocada a responsabilidade de salvar abril.

As figuras nefastas que a democracia tolerou e que se apresentam ao eleitorado com esgares imbecis, comportamentos de maus alunos que gesticulam na sala de aula, desdenhando o professor, criaturas malcriadas e infelizes que usam todos os meios para conquistarem, pelo cansaço alheio. a hipótese de irem mais cedo para o Recreio, onde aqueles que os aplaudem e agradecem terem mais horas de recreação e menos de educação, graças a eles. Esses hábeis mentecaptos da subversão, usam também as mãos, é certo, mas para gestos obscenos; usam a boca é certo, mas para desonrarem os antigos, os seus ancestrais, e para trair, para mentir, para difamar, para levantar suspeições para assassinar pelo menos o caráter alheio, em nome da defesa de violações e de insultos aos direitos e aos seus semelhantes. Também neles os pés são ágeis, mas pesam menos que a cabeça.

São perigosos, e desdenham daquilo que nós lhe damos (pão, sustento e tempo de antena); sim, nós é que pagamos: os ordenados, a sua presença em parlamentos; a sua traição aos seus pares e ao País; os votos; as campanhas; os fatos; e as gravatas; os vestidos e as gargantilhas; os carros e o combustível; a existência à nossa custa.

Será que o ser humano evoluiu para isto, para que as mãos habilidosas se resumam a dois polegares a jogar jogos online ou a mandar SMSs conspurcados?

Lá longe nos primórdios da sabedoria, o ser humano quis ser mais do que um primata. Hoje, o símio extremista, racista, xenófobo, homofóbico, cobarde, resolve catar os piolhos da própria cabeça e enfrentava-nos e afronta-nos dizendo que nos representa. Mas não, não nos representa. Pelos pés que nos levarão a outro rumo, pelas mãos que podem mostrar-lhe gestos dignos e de respeito pelo semelhante; pela boca e pelas palavras- será abril em março, pois muitos vão resistir-lhe.

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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